GRUPO ANÁLISE
TRAUMA, GRUPO E INSTITUIÇÃO
October 01, 2017
TRAUMA, GRUPO E INSTITUIÇÃO
Resumo
Este artigo debate o lugar do grupo na formação da cena que instaura o trauma causador do recalque e, desde essa base patogênica, re-visita o percurso percorrido por Freud quando se propõe apresentar a psicologia individual como sendo também uma psicologia social, proposta essa acompanhada posteriormente por diversos psicanalistas que estabeleceram as bases teóricas que sustentam a aplicação da Psicanálise ao campo grupal e institucional. Nesse debate, abrem-se janelas suportadas na experiência com grupos, as quais permitem iluminar as variações relativas à técnica bem como as condições de estruturação dessa proposta de clínica, necessárias que são à condução de processos grupais a partir da teoria psicanalítica.
Palavras-chave: Psicanálise; Trauma; Grupo; Instituição.
Introdução
A proposta de uma clínica voltada ao coletivo não esteve presente originalmente no pensamento de Freud. Contudo, suas conclusões relativas ao campo social em conseqüência de sua experiência na clínica psicanalítica, foram estabelecendo gradativamente uma linha de pensamento que lhe permitiu afirmar em determinado momento – em Psicologia das massas e a análise do Eu – que a psicologia individual é sempre uma psicologia social.
O seguimento de sua obra a partir dessa afirmação foi evidenciando então, com maior clareza, a possibilidade de constituir-se uma clínica grupal e em pensar no modo psicanalítico o fenômeno institucional.
Fundados nessas conclusões, inúmeros autores oriundos do percurso psicanalítico, passaram a pesquisar o potencial do grupo para intervenções que permitissem o alcance de objetivos analíticos ou terapêuticos ou mesmo de efeitos terapêuticos. Esses autores realizaram experimentos que apresentaram resultados em sentido analítico limitados às possibilidades do setting que trouxe questões novas, tais como a participação do olhar do terceiro, a multiplicidade das transferências, a heterogeneidade ou homogeneidade relativa às diferenças subjetivas ou, relativas às similaridades identificatórias devidas à presença de mais de um sujeito demandante no mesmo espaço psíquico e físico; também, as questões relativas à formação de uma estrutura ou uma dinâmica psíquica presente na constituição subjetiva que deve, assim, ser considerada essencialmente intersubjetiva.
Esses experimentos levaram a modificações no método e na técnica, bem como ao aprofundamento da abordagem clínica com a ampliação ou “alargamento” da teoria psicanalítica, de tal modo que foi delineado gradativamente um novo campo de trabalho, pesquisa e elaboração teórica, o qual se subordina ao pensamento psicanalítico original em todos os sentidos, mas abre também a cortina para um outro lado, que não é trabalhado na psicanálise como tal e permite certos questionamentos, como é típico no mundo psicanalítico quando ocorrem os afastamentos em relação ao denominado “purismo da psicanálise”.
Quando a psicanálise passa a pensar o grupo
Freud já traz em seus casos clínicos desde os tempos do método catártico, no final do século 19, diversos pontos indicativos da influência do "outro" ou dos outros nas ocorrências infantis que estão sustentando a formação da cena traumática e o decorrente recalque formador do núcleo patogênico que está na base da patologia. Sua obra evidencia que a dinâmica presente nas interações do sujeito infantil com os outros relevantes que atuam dentro dos primeiros vínculos afetivos do infante, faz parte do contexto que leva à formação do recalque em função de um evento traumático, causador da neurose. Temos nessa situação a presença do que está convencionado denominar grupo primário.
Cabe ressaltar que em todo o transcurso de sua obra, Freud manteve o ponto de vista de que a neurose se instala tendo por base dois conjuntos de fatores indutores: as disposições inatas e as experiências acidentais, conforme afirmou no texto Esboço de psicanálise de 1938 e já afirmava igualmente com outras palavras nos textos sobre histeria em 1885.
A análise dos casos, bem como a sua análise pessoal, conduziram Freud ao conceito de Complexo de Édipo e desde então, o grupo primário, integrado por pelo menos três sujeitos, tal como definimos anteriormente, pode ser reconhecido dentro do pensamento psicanalítico.
Quando funda o grupo das quartas feiras, Freud passa a ser membro e líder de um grupo no qual vivencia situações que são típicas dos grupos primários e também situações que surgem nos grupos secundários. Ciúmes, inveja, competição, disputa pelo amor do pai bem como disputa pelo lugar do pai, rebeldia. A dinâmica do grupo estava dinamizando o grupo fundador da psicanálise.
Dai Freud chegou, em 1913, na obra Totem e Tabu, ao debate sobre a fundação do grupo, colocando a questão do assassinato do Pai como determinante na passagem das gerações e aprofundando a discussão sobre o Complexo de Édipo. Tendo, com essa propositura, apresentado os fundamentos do surgimento do grupo, Freud pôde, menos de dez anos depois, pensar objetivamente sobre a dinâmica do grupo a partir da obra Psicologia das massas e a análise do Eu. A discussão foi complementada alguns anos depois, durante a década de 1930, com as obras Mal-estar na cultura e O homem Moisés e o monoteísmo.
Em essência temos, nessa sequência de textos, a construção do arcabouço teórico necessário à compreensão de que a psicologia individual é sempre social ou grupal. Assim, Freud estabeleceu as bases necessárias para o surgimento de uma psicologia de orientação psicanalítica que se atreve a atuar no espaço das massas, ou grupos, no campo social, mas com visão basicamente clínica. No final de sua vida, Freud também propôs que seria possível ou necessário pensar formas diferenciadas de psicoterapias num processo de popularização da Psicanálise.
Quando afirma isso, Freud já convive com os experimentos de Sandor Ferenczie que estava à procura de variações técnicas que possibilitassem abordagens mais objetivas ou de menor duração, dentro de sua pesquisa que foi por ele denominada com o título de “técnica ativa”. Também nessa época, Michael Balint já tentara organizar alguns grupos em Berlim e Budapest usando como referencial a obra psicanalítica e a sua experiência na Escola Húngara de Psicanálise onde as supervisões eram realizadas em grupo. Ainda, na Inglaterra S. H. Foulkes e E. J. Anthony já realizavam experimentos com grupos em variados contextos, usando como referencial teórico a obra psicanalítica.
Depois da morte de Freud, ocorreram diversos confrontos teóricos no mundo psicanalítico, envolvendo de um lado o assim denominado “Purismo da Psicanálise” e, de outro lado, psicanalistas que defendiam variações teóricas que se opunham de algum modo a esse purismo. Nesse contexto, também surgiu a oposição aos pesquisadores da Psicanálise que se interessa pelo grupo. Mas, esse confronto não levou a um rompimento e estabeleceu-se um convívio mesmo que “distanciado”, pois os psicanalistas de grupo continuavam a atuar psicanaliticamente na clínica individual, embora mantivessem uma prática clínica em separado, voltada para o grupo.
Esclarecemos, o mesmo psicanalista que teorizava sobre o grupo, podendo ser visto como dissidente, também teorizava sobre a clínica psicanalítica em sua forma aceita pelo “purismo da psicanálise”, não podendo, devido a manter esse seu pertencimento à Psicanálise em sentido estrito, ser confirmado como um dissidente. Podemos citar aqui Balint e Bion. Uma exceção importante talvez seja Enrique Pichon-Rivière, psicanalista argentino, fundador da primeira sociedade de psicanálise daquele país, que terminou por fundar uma psicologia social de orientação psicanalítica e passou a intitular-se Psicólogo social. Mas, Bion, Foulkes, Balint, Anzieu, Kaës, Zimermann, Bleger, Faro e tantos outros que não nomeamos agora, foram ou são psicanalistas que mantiveram ou mantêm duas clínicas ou pelo menos, dois olhares, um para o sujeito que demanda a psicanálise em sentido stricto sensu e outro para o sujeito no grupo e o sujeito do grupo ou também, o sujeito no coletivo institucional.
Neurose e sua origem no trauma que envolve os objetos primários
Lembramos a afirmação de Freud de que a histeria pode ser adquirida, mas também pode decorrer de uma condição inata que seria função de uma debilidade constitucional a qual seria facilitadora dos assim chamados "estados hipnoides". Estando o sujeito no estado hipnoide, teria dificuldade maior para reagir quando da ocorrência de um evento causador de trauma e nessa condição o recalque se instalaria sem maior reação. Sabendo-se que o evento traumático inclui a participação, mesmo que fantasiosa, de "Outros relevantes" (os objetos) e que o trauma marca a vida infantil, conclui-se por essa propositura freudiana que o ambiente familiar, portanto o grupo primário, está contribuindo na formação da patologia. Examinando-se os casos de Ana O, Emmy, Lucy, Katarina, Elisabeth, o Homem dos Ratos, o Homem dos Lobos, em todos eles está evidenciado que a patologia é instaurada gradativamente e, que isso acontece a partir de um trauma original que recebe posteriormente o reforço de outros eventos, eventos auxiliares, os quais se associam psiquicamente ao evento traumático original. O grupo primário que faz essa função é o familiar, que comparece como agente facilitador da instauração das bases patogênicas.
Esclarecemos que Freud percebera que certos eventos posteriores ao trauma original podem levar o psiquismo a reconhecer um elo entre o evento novo e o evento relativo ao recalque que já estava instaurado desde bem antes, reativando as forças desse recalque e favorecendo o surgimento do sintoma histérico; o recalque original sendo ativado e ampliado em mais de um tempo. Em complemento de sua teoria sobre os mecanismos de defesa, Freud nos diz que as outras neuroses transferenciais que também surgem a partir do recalque, seguem esse mesmo caminho.
A reativação - no grupo - dos mecanismos psíquicos
O sujeito infantil é provocado a adotar mecanismos psíquicos em função de estar sendo compelido a formar vínculos psicológicos com seus objetos primários. Tais mecanismos têm como função obter dos objetos a satisfação de seus desejos e evitar a frustração. Nesse sentido, tais mecanismos podem organizar-se no modo neurótico ou perverso. Também podemos classificar esses mecanismos de acordo com uma das seguintes posições opostas: a primeira delas, na forma de ser ensejada prioritariamente a aproximação em relação ao objeto, o movimento de preensão ou, como afirma Balint, em forma de ocnofilia; a segunda, ao contrário, na forma de ser ensejado o afastamento, a afetividade negada, a forma esquizóide ou, nas palavras de Balint, a filobatia. Esses mecanismos são desenvolvidos durante todo o período infantil e recebem suas características definitivas a partir da passagem dos períodos críticos da puberdade. Identificamos esses mecanismos psíquicos como relativos ao grupo primário.
Procuremos entender como se dá a adoção desses mecanismos quando da chegada do sujeito ao grupo secundário, o que acontece gradativamente à medida que o agora jovem vai ingressando em instituições que mantêm cada vez menos características que possam remeter às identificações relativas ao grupo primário. Ocorre que, ao entrar em qualquer grupo, procurando ser aceito, manifestam-se no sujeito certos padrões - Balint os denomina automatismos - que servem para interagir ou mesmo vincular-se aos outros, quando esses outros não respondem a esse sujeito de acordo com as respostas dos objetos primários. Essas variações são viabilizadas no encontro entre o sujeito ingressante e os representantes institucionais pré-existentes. Constituem variações dos mecanismos psíquicos primitivos desenvolvidos durante a infância, como tentativas de contornar as diferenças nas respostas desses objetos que não correspondem aos objetos conhecidos.
Antecipamos que é o funcionamento de tais automatismos e seu investimento em objetos que nos dá o colorido da transferência, mas ressaltamos que inclui formações reativas condizentes com o conteúdo recalcado. O sujeito passa a manifestar no grupo reações típicas.
Nesse processo anteriormente indicado, cabe destacar a presença dos mecanismos de identificação e aqueles relativos à escolha de objeto sexual. Projeções variadas são direcionadas ao grupo como totalidade [o grupo como representante da família] e a cada um dos elementos constituintes do grupo [cada um deles como representante dos objetos primários em sua singularidade]. Surge, nesse contexto, a manifestação do desejo, que representa a “falta” do sujeito relativa ao conjunto vincular original. Nessa dinâmica potencializada a partir da falta é que são manifestados os mecanismos psíquicos que referimos.
Identificação, encontro de objeto sexual, hipnose e sugestão:
Freud enfatiza que no grupo cabe posto de relevância à discussão do lugar ocupado pela sugestão (ou a hipnose) no encontro entre dois, quando um desses dois ocupa o lugar do sujeito que realiza projeções direcionáveis ao Pai e o outro passa a representar simbolicamente o “lugar do Pai”, receptor dessas projeções. A hipnose mantém importante vínculo com a sugestão; a atuação da sugestão, evidenciada na clinica individual já como reativação do magnetismo presente, desde antes, no olhar parental e agora também no grupo, como um poder que é relativo ao magnetismo do olhar que se direciona a cada membro do grupo ou, como movimento psíquico contrário ao desejo de cada um do grupo, abandona cada um deles para privilegiar o todo grupal; ou ainda, mais ausente ainda o olhar do Pai, quando esse olhar se manifesta de modo a não reconhecer um lugar àquele que o busca, colocando-o "do lado de fora do todo conhecido grupal". Esse olhar traz amor, ódio, ciúme, rejeição, desamparo, erotismo, igualdade e diferenças. Esse olhar atualiza o olhar do Pai Primitivo, aquele do Pai da Horda apresentado em Totem e Tabu, mais perto da filogênese, mas também o olhar do pai da ontogênese.
Grupo, Ideal de Eu, Ideal de Grupo e negatividade:
Ao discutir o lugar do líder, Freud o apresenta como substituto do Pai. O amor e o ódio ao Pai promovem a adesão dos membros ao grupo, ligação essa procurada para lidar no modo coletivo em relação a esse ser poderoso. Mas, para serem aceitos, devem, cada um por sua vez, abrir mão de seus próprios ideais narcísicos [de caráter individual] até o ponto em que surge tolerância do líder e do grupo, que não tolerariam o sujeito totalmente narcísico que não se submete aos ideais do líder e do grupo. Lembra Freud que o Ideal de Eu é herdeiro do narcisismo infantil. Esse Ideal precisa ser negado até o limite em que se opõe ao Ideal de Grupo, que por sua vez foi construído a partir da dinâmica grupal que leva cada indivíduo a submeter-se - em última instância - ao Ideal de Eu do líder transformado em Ideal de Grupo. É necessário negar algo de si mesmo para ser tolerado pelo grupo e para tolerá-lo. Já havíamos abordado a necessidade do sujeito que adentra o grupo de adotar mecanismos psíquicos típicos indicativos de seu desejo de ser aceito, os quais são desenvolvidos na infância no espaço psíquico da família.
A clínica grupal de orientação psicanalítica:
Freud não estabeleceu uma clínica grupal, mas as bases teóricas por ele produzidas tornaram-se fundamentais para que psicanalistas das gerações seguintes desenvolvessem métodos e técnicas para espaços coletivos.
A saída do setting individual para o grupal exigiu a consideração de aspectos da constituição do grupo primário que na clinica individual surgem em função do constante manejo da transferência por parte do analista e que no grupo irão requerer outro manejo, representativo do lugar do pai quando defronta o coletivo familiar. No grupo, o analista compartilha a transferência com cada membro e com o todo; daí decorre o conceito de transferências cruzadas. As transferências relativas a cada membro do grupo em relação ao analista estão impactadas e potencializadas pelos olhares integrantes do grupo fraterno e, estes olhares estão, do mesmo modo, impactados e potencializados.
Assim, o grupo coloca em primeiro plano as representações da vida primitiva do âmbito vincular, familiar, embora de modo inconsciente. O conjunto grupal vai sendo potencializado e vai induzindo a ocorrência de manifestações de mecanismos típicos subjetivos que ocorrem somente porque o grupo está funcionando e, porque nesse contexto psíquico, o sujeito responde de um modo que é relativo à sua existência no grupo.
Sofrimento psíquico e considerações relativas ao trauma quando da existência de vínculos institucionais:
Na instituição, quem sofre? Sofre por quê? Como é esse sofrimento?
A instituição existe depois do grupo, criada que é porque este último exige perpetuar-se. Na realização desse desejo do grupo, de continuidade sem limite, as normas criadas para o funcionamento do grupo cristalizam-se; trata-se de assegurar que a eternidade seja mantida e que o risco de morte seja afastado. A instituição é proposta como resistência à pulsão de morte que marca cada sujeito instituído. Nesse processo, a pulsão de vida que marca a existência dos fundadores do grupo foi deslocada, no âmbito do próprio grupo, para a formação de um Ideal de Grupo. O Ideal de Grupo é herdeiro do narcisismo das pequenas diferenças relativo à fundação do grupo, tal como o Ideal de Eu é herdeiro do narcisismo infantil de cada sujeito que existe no grupo e antes do grupo.
Aquele que está em busca de ser amparado pela instituição é convocado a abrir mão de parte de seu narcisismo, portanto de seu Ideal de Eu, para submeter-se ao narcisismo das pequenas diferenças que marcam a instituição e que marcam desde antes o grupo que antecede essa mesma instituição. Portanto, abre mão de seu Ideal de Eu em prol do Ideal de Grupo Institucional. Essa forma de adaptação já existe desde o modelo familiar, quando a instituição família impõe a cada um de seus membros originais o mesmo processo e exige de cada um que nela ingressa posteriormente, uma submissão às pequenas diferenças daquela família. Aquele que não se submete, será visto como estrangeiro que se mantém estranho. Este receberá o tratamento que é dado aos que não fazem parte do grupo instituído. As pequenas diferenças entre o grupo instituído e o sujeito estranho são marcadas no compasso das formas de convívio, levando à formação de uma tolerância mútua que se sustenta em limites dentro do espaço intersubjetivo, visível no uso dos códigos relativos à comunicação ou de falta da mesma, por exemplo. Esses códigos de comunicação pretendidos como asseguradores da existência de um espaço psíquico compartilhado de investimento mútuo, podem indicar também a rejeição daquilo que se manifesta ou ainda a expulsão do sujeito não-adaptado, mas também a imposição de uma submissão que não pode ser tolerada.
O sofrimento na instituição decorre, em primeiro plano, do processo de rejeição. Retomamos agora o olhar do Pai que rejeita o filho desde a formação da cultura e, em casos extremos, o expulsa da horda. Quem sofre? Sofre o sujeito que deseja estar na instituição mas não tolera os excessos dela. Porém, em segundo plano, sofre aquele que se frustra com a instituição mas é refém daquilo que esta lhe oferece, tal como o filho que se frustra com sua família, mesmo sendo ela a que lhe dá amparo e lhe propõe o alcance de um ideal, isto porque não consegue cumprir isso.
Por quê acontece isso? Porque o Ideal de Grupo Instituído permanece como um ideal a alcançar enquanto o Ideal de Eu do sujeito não pode esperar. Existe aí um hiato, no qual um Ideal de Grupo está instituído com normas que existem para assegurar a continuidade desse mesmo ideal, mas não asseguram a sua realização no sentido de um Real, ou uma atualidade, enquanto o sujeito se vê ameaçado pela própria pulsão de morte que está a anunciar que o Ideal de Eu tem uma temporalidade limitada à própria existência desse sujeito. O ideal imortalizado é confrontado pelo real individual e subjetivo indicativo da finitude. Em terceiro plano temos ainda a considerar o uso perverso que fazem do grupo instituído, aqueles que ocupam o Lugar do Pai, visando suas realizações narcísicas independentemente do desejo dos fundadores do grupo e, portanto, do Ideal de Grupo Instituído.
Nesse contexto temos os abusos cometidos pelos detentores de poder quando extrapolam o exercício da autoridade, para obter o gozo dentro da instituição ou em nome dela. O assédio sexual, também o assédio moral, as pequenas violências psicológicas ou mesmo físicas, o uso de subterfúgios que objetivam a submissão dos sujeitos ao gozo das autoridades institucionais, são exemplos de uso perverso da instituição. Também podemos encontrar esses mesmos mecanismos na instituição família quando os elementos perversos dela se apoderam. Concluímos que na instituição sofre o sujeito naquilo que ele se caracteriza como sujeito do grupo e também naquilo que ele se caracteriza como sujeito instituído. Kaës criou, para o debate dessa parte sobre a identidade, o conceito de sujeito do grupo, propondo ainda o aprofundamento de questões relativas a uma intersubjetividade.
A segunda pergunta que fizemos no início deste capítulo (Por quê o sujeito sofre na instituição?) recebe resposta que envolve, portanto, os lugares do Pai e do filho, quando está presente na instituição o desvio de finalidade ou o postergamento do Ideal de Grupo Instituído. Existem elos de qualidade psíquica que relacionam o sofrimento na instituição – seja esta qual for - às possibilidades de sofrimento na instituição família.
A instituição que se apresenta como organização do trabalho, ao constituir-se na mais representativa da vida social – pelo menos em termos quantitativos relativos ao tempo cronológico e em termos de idealização relativos ao Ideal de Eu – apresenta importantes condições para que eventos atuais estabeleçam conexão com a vida infantil. Nesse processo de conexões psíquicas podem ocorrer eventos atuais com características que os aproximam – em termos associativos – daqueles eventos auxiliares da formação do recalque. Nestes casos não podemos falar em novo recalque, porque a vida infantil já está no passado, mas podemos falar em outras formas de causação de sofrimento psíquico, que são representativas da vida adulta. Podemos propor um recalque relativo à impossibilidade de lidar com a frustração do Ideal de Eu.
Chegamos à terceira pergunta feita no início deste capítulo: Como é esse sofrimento que acontece em função da existência institucionalizada?
Não temos como desconsiderar que se trata do sofrimento relativo à frustração, mas também lembramos que o recalque em si apresenta importantes conexões com a necessidade de negar um sofrimento. O trauma estudado por Freud desde os Estudos sobre a Histeria, refere-se à impossibilidade de aceitar a dor psíquica que envolve uma experiência na qual o objeto primário falta ou fracassa de algum modo, ocorrendo em função disso uma frustração ou um medo.
Lembramos que Freud também fala em susto (Schrek) na causação do recalque e que esse susto, de algum modo é exacerbado justamente quando o objeto primário não atua de modo a facilitar uma reação adequada do sujeito infantil, acolhendo-o, esclarecendo, amparando. Ora, pergunta-se, se não é algo próximo disso que acontece na instituição organização do trabalho, quando o sujeito trabalhador é surpreendido por uma situação que frustra e na qual deve negar o seu sofrimento, pelo menos perante as figuras de autoridade? Percebe-se aqui um novo elo com a vida infantil! Onde estará a diferença entre a vida infantil e a instituição atual? A resposta pode ser encontrada na possibilidade de uso da linguagem. Na vida infantil, o sujeito ainda não se apoderou total ou preponderantemente da linguagem adulta e por isso não consegue estabelecer conexões entre as palavras que lhe faltam e o mundo de sensações que o atingem, enquanto na vida adulta as palavras já fazem parte de seu mundo consciente, mas está impedido de usá-las ou seu uso não faz efeito ou até leva a um efeito deletério. Por isso, é impelido a negar o uso da palavra que se associa às suas sensações, passando a produzir assim um recalcamento que é comandado pela consciência. Temos desse modo um recalque desejado pelo Eu visando a sua própria preservação como estrutura organizada, bem distinto do recalque da vida infantil, o qual ocorre envolvendo um Eu ainda em formação. Aqui retomamos a proposta de um recalque relativo à impossibilidade de lidar com a frustração do Ideal de Eu. Contudo, esse recalque atual considera a co-existência do Ideal de Eu e da consciência moral (o Supraeu), enquanto o recalque da vida infantil se realiza na presença de um narcisismo infantil com a precariedade do Supraeu que nesse tempo está ainda em formação.
A necessidade de negar a manifestação do desejo, que soe acontecer quando se teme perder um lugar alcançado no âmbito institucional, atua como mecanismo psíquico primário que por sua vez leva à formação de sintomas secundários que serão reconhecidos como manifestações patológicas. Destacam-se nesse quadro as depressões, as manias, as dependências químicas, a insônia, os quadros de angústia ou ansiedade, pensamento ruminante, as somatizações, a paranóia, os quadros fóbicos e outros sintomas, aos quais podem agregar-se as atuações que pretendem eliminar a causa do sofrimento de modo radical, incluindo-se ai as tentativas de suicídio e eventualmente as agressões destinadas aos substitutos do objeto causador do sofrimento. Dejours inclui aí os denominados mecanismos defensivos individuais e mecanismos defensivos coletivos.
Cabe agora revisarmos o conceito de trauma psíquico para nele englobarmos os acontecimentos apontados por Freud nos assim denominados grupos artificiais, nome por ele usado para designar as instituições que não se caracterizam pela vinculação primária e requerem forte coação de origem externa, que exemplificou com a Igreja e o Exército. Acreditamos poder incluir a organização do trabalho nesses grupos artificiais e então nos habilitamos a um debate em continuidade à obra de Freud sobre esses grupos artificiais. Podemos agora propor a possibilidade do trauma renovado quando ocorrem na instituição – ou no grupo artificial - certos eventos que se associam ao trauma original da vida infantil bem como aos seus eventos auxiliares daquele mesmo período. Parece-nos que o trauma não pode ser conceituado de modo limitado unicamente como decorrente de um só evento impactante.
E quanto ao estabelecimento de vínculos com as instituições, podemos hipotetizar o trauma, também, como seqüência ou continuidade de condições que levam o sujeito a associações cotidianas com a frustração, induzindo a manutenção de condições de frustração por longos períodos que conduzem à manutenção de condições ansiogênicas que não se dissolvem. Nesse processo é alcançado um tempo limite, marco esse visível quando o sujeito passa a desenvolver quaisquer dos sintomas que referimos anteriormente.
Evidentemente, além da condição traumatizante no âmbito institucional, as condições inatas do sujeito, citadas por Freud nos Estudos sobre a Histeria. Indutoras do surgimento de neurose, têm muito a dizer sobre a organização psíquica do sujeito para reagir ao trauma. Porém, acreditamos que além dessas condições inatas, as formações psíquicas desenvolvidas em toda a vida infantil para lidar com o recalque, bem como a qualidade relativa às passagens das fases do desenvolvimento psicossexual, também constituem fatores inibidores ou favorecedores da instauração de patologias no âmbito institucional, na medida em que as dificuldades da vida infantil serão novamente confrontadas nas instituições ou grupos artificiais.
Sobre a formação do grupo artificial clínico:
Quando somos convocados a prestar nossos serviços com o objetivo de abrir espaço para a resolução dos conflitos que envolvem o vínculo entre o sujeito e o grupo primário, temos uma oportunidade especial para trazer à tona a história do grupo familiar desde a sua formação original até o momento atual. Essa condição propicia material psicológico rico que facilita enormemente a atuação do analista, pois este encontra espaços entre histórias individuais que foram marcadas na história do grupo e vice-versa. Tornam-se visíveis as lacunas, os hiatos, os não-ditos e não-sabidos e os encobrimentos dentro de uma história que é quase totalmente comum ao grupo no início de vida de cada sujeito, mas vai adquirindo nuances de caráter narcísico na medida da passagem do tempo. Contudo, os mecanismos psíquicos identificatórios dos vínculos primários continuam a estabelecer um lugar comum a todos os membros desses grupos.
Considerando-se que as bases da patologia são constituídas preponderantemente na vida infantil, o trabalho que focaliza a história conjunta se apresenta enormemente profícuo.
Acontece de outro modo quando somos convidados a atuar nos grupos artificiais. Nesse caso, cada sujeito do grupo traz sua história pessoal e relativa a um grupo primário que nesse grupo artificial não pode, em princípio, ser reconhecido. Os membros do grupo artificial não compartilham em seus afetos, os mesmos objetos primários e as mesmas experiências em conjunto. As histórias se individualizam. Há, inevitavelmente, alguma perda no âmbito das identificações grupais. Essa condição impõe outro modo de intervenção, que se realiza na atuação do analista quando este procura estabelecer e demonstrar os eventos que evidenciam sentidos que se assemelham apesar das histórias individuais, processo analítico esse que permite a todos os membros encontrar um lugar comum que se atualiza no grupo artificial. Tal manejo da situação analítica grupal possibilita a formação de identificações entre os membros desse grupo, fator esse essencial para que possam ocorrer associações de idéia entre os membros do grupo e dentro do grupo.
No grupo primário, as identificações estão presentes desde antes, constituindo essa base a homogeneidade necessária para que possa ocorrer análise do grupo familiar. No grupo secundário, por sua vez, é preciso trabalhar inicialmente as possibilidades de ocorrência de identificação, o que requer que esse grupo seja o mais homogêneo possível dentro do que venha a permitir a heterogeneidade natural do público envolvido.
No grupo primário o trauma se atualiza em conjunto, num mesmo tempo psicológico, a partir de uma interpretação que consegue demonstrar algo que constituiu a história conjunta. Já no grupo secundário, torna-se necessário encontrar inicialmente, antes de qualquer análise, os conteúdos que repercutem da mesma forma em todos os elementos do grupo, para estabelecer uma base comum de análise mediante o uso dos elos identificatórios que assim se tornam possíveis. Nesse sentido, cabe ressaltar que não ocorrendo identificação, isto é, não havendo o reconhecimento dos outros como objetos de identificação, tende a prevalecer na dinâmica grupal o conjunto dos mecanismos psíquicos relativos à competitividade ou, em extremo, aqueles mecanismos psíquicos usados para a sedução do objeto sexual, o que inviabiliza o grupo como ação terapêutica. Continuando, obtida a identificação necessária ao funcionamento do grupo secundário clínico, o trauma pode atualizar-se e receber tratamento analítico.
Finalizando, trabalhar o sujeito no grupo sem incluir nesse trabalho os aspectos relativos à identificação, os quais requerem existir homogeneidade grupal, constitui-se em um modo de análise silvestre, na medida em que expõe o sujeito da análise ao olhar crítico dos demais membros do grupo, tendo como conseqüência o aprofundamento do quadro neurótico desse sujeito e, em contrapartida, o agravamento dos mecanismos psíquicos utilizados pelos demais membros desse grupo quando assistem ao “desnudamento” traumático de um outro. Inevitavelmente, teremos o uso do espaço compartilhado para satisfações que se afastam da análise ou a confrontam.
Autor: Juan Adolfo Brandt
Psicanalista, Doutor em Psicologia Social pela USP, Membro Fundador da Sociedade de Psicanálise Pluralista (SPP-DF), Individual Member of International Federation of Psychoanalitic Societies IFPS). tel.: 61-9.9218.1886. juanbrandt.psi@gmail.com ;
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